domingo, 9 de julho de 2017

O ROMANCE DE ISAURA E JOÃO MIMOSO OU A COBRA ENCANTADA DA LAGOA DO PADRE ANDRADE

O ROMANCE DE ISAURA E JOÃO MIMOSO 

OU A COBRA ENCANTADA DA LAGOA DO PADRE ANDRADE


        "O Romance de Isaura e João Mimoso ou a Cobra Encantada da Lagoa do Padre Andrade" é um dos primeiros folhetos de cordel do Maestro Rafael Brito. Rafael Brito é declamador, músico, ator, artista plástico e agora também revela sua face poeta, ao escrever, de uma canetada só, dez folhetos de cordel.. A Cordelaria Flor da Serra ao editar esse folheto, resgata uma das mais criativas e férteis tendência da poesia popular.
      O encantamento é uma das tradições que têm raízes profundas nas narrativas populares, e é, de certa forma uma herança direta da cultura árabe, presente nos contos das Mil e uma noites, como também em tantas outras tradições, como por exemplo, na literatura oral africana e indígena. Esse preâmbulo é tão somente para fundamentar a narrativa de Rafael Brito em A lagoa da cobra encantada do Padre Andrade, ou o romance de Isaura e João Mimoso dentro de um contexto que tem como foco narrativo a tradição milenar dos povos em contar histórias de seres humanos transformados em animais. 
        Donzelas que viram serpentes é um tema muito presente na tradição das lendas urbanas e para ilustrar esse argumento, cito que nos anos 80 era muito comum se ouvir nas rodas de conversas, argumentos inquestionáveis de populares sobre a existência de um túmulo acorrentado que existia no Cemitério São João Batista e que no qual habitava uma moça que virou cobra, como castigo por desobediência à mãe.. Nesse cordel, Rafael Brito, narrando uma história do seu tempo de menino, resgata essa tradição, colocando na capa uma ilustração de sua autoria.

Foi assim que o Mestre Paiva Neves, proprietário e editor da Cordelaria Flor da Serra, descreveu o meu folheto "O Romance de Isaura e João Mimoso ou a Cobra Encantada da Lagoa do Padre Andrade, e seguiu dizendo:

      Fortaleza, como qualquer outra cidade, vivencia as suas lendas. As lendas urbanas povoam e se perpetuam no imaginário popular. Quem nunca ouviu falar do "Carro Preto" que pegava os meninos para vender no estrangeiro, do "Corta Bunda" do José Walter, da "Perna Cabeluda" e para os mais antigos "O Papa Figo", "A Loura do banheiro" ou "O monstro da Água verde da Guaiúba" ou ainda o famoso "Cão da Itaóca". Rafael Brito vai beber em uma dessas lendas, uma linda história de amor do então bucólico bairro de Padre Andrade. Isaura, a moça que virou cobra e João Mimoso, o viajante que se encanta pelo melodioso canto da serpente donzela. "O Romance de Isaura e João Mimoso ou a Cobra Encantada da Lagoa do Padre Andrade", é o primeiro cordel desse jovem poeta a ser editado. Rafael Brito é aquilo que podemos chamar de artista de muitas faces. Ele é declamador, e dos melhores, ator, músico,artista plástico e começa a se insinuar pelo mundo do cinema. É com imenso prazer que a Cordelaria Flor da Serra publica essa obra de Rafael Brito.

       Meu primeiro folheto editado, esteve em boas mãos, e teve a honra de ser lançado na XII Bienal Internacional do Livro do Ceará. Causou muita admiração aos moradores do meu bairro, por segundo alguns dos moradores das redondezas da lagoa citada na história, jamais imaginaram que poderia virar uma história escrita, principalmente, um cordel!
       Essa é uma maneira de manter vivas as histórias do nosso povo, e a memória dos mais velhos.
Vivo no Jardim Iracema, bairro ao lado do Padre Andrade, em Fortaleza, e venho, com esse folheto, mostrar que na comunidade, no subúrbio, tem muito mais do que histórias de violência, fome e tráfico. Nosso povo é um povo rico, e temos que valorizar essa riqueza.
         A nossa Fortaleza é floreada de histórias e de cultura, só precisamos ver isso com os olhos certos.
Essa é a primeira história do meu bairro que conto em cordel e não será a última, quero mostrar ao mundo o que tem de melhor nas periferias de Fortaleza.
       Quem me deu grande ajuda nessa empreitada foi Ivânia Maia e o Projeto Criança Feliz, que se localiza na rua que divide Jardim Iracema e Padre Andrade. Divide geograficamente, por que os dois bairros estão mais unidos do que nunca. 
      Fruto de muitas pesquisas sobre a história da famosa cobra Isaura, esse folheto fortifica as histórias do nosso povo, e a veia cultural e protetora do Projeto e de Ivânia.

        Segue aqui, o texto, na íntegra, do folheto "O Romance de Isaura e João Mimoso ou a Cobra Encantada da Lagoa do Padre Andrade":

As histórias de trancoso
Contadas no meu sertão
Nem se comparam ao roteiro
Dessa minha descrição
Pois a história que narro
Não é fruto de invenção.


Quem ouviu contar história
De monstros assustadores
Vai gostar da narrativa
Que contarei aos leitores
De uma cobra encantada
Que causou muitos horrores.

Foi a muito tempo atrás
Em uma localidade
Chamada de Padre Andrade
No subúrbio da cidade
Que essa história passou
Foi pura realidade.


Existe ali uma lagoa
Que tem um nome estranho
É “Lagoa do Urubu”
Eu mesmo já tomei banho
Naquela que guarda o mistério
De uma cobra sem tamanho.


Disseram que uma vez
Um trator da prefeitura
Foi limpar a tal lagoa
Para a geração futura
Tomar banho de lagoa
Mantendo a nossa cultura.

Quando de repente a cobra
Enrolou-se no trator
E foi puxando pra dentro
Junto com seu condutor
Para dentro da lagoa
Pra sentir o seu sabor.

Mas eu não quero fugir
Do meu roteiro final
Nem contar terríveis coisas
Desse enorme animal
Quero falar do encanto
Desse bicho sem igual.



Foi Isaura uma moça
Das mais belas da cidade
Comparando o seu olhar
Com a lua em claridade
Mais bela que um bem-te-vi
De tanta formosidade.

As moças tinham inveja
Daquela beleza infinda
Pois entre as moças do bairro
Foi de todas a mais linda
Todos queriam sua presença
Chegando era bem vinda.

Mas o tiro da inveja
Um dia lhe acertou

Pois uma moça do bairro
Um feitiço lhe lançou
E fez tão bem feito o encanto
Que uma cobra se tornou.

Disse em poucas palavras
Que o encanto quebraria
Se um rapaz sincero e forte
Cheio de viço e alegria
Se apaixonasse por ela
E somente assim seria.



Isaura, desesperada
Sendo encantada chorou
E vendo que da beleza
Sincera nada sobrou
Rastejou mais que de pressa
E na lagoa entrou.

Daquele dia em diante
Ninguém mais viu a beleza
Daquela moça tão linda
Nascida da natureza
Cheia de vida e repleta
De garra e de destreza.

A inveja mata o ser
Que deixa esse sentimento
Se instalar no seu peito
Cheio de ressentimento
Só causa contrariedade
Solidão e sofrimento.

Então Isaura encantada
Bem no fundo da lagoa
Começou a entoar
Uma cantiga tão boa
Tão tristonha e solitária

Parando qualquer pessoa.


Até que um viajante
Que vinha de bem distante
Ouvindo ali a história
Daquela cobra gigante
Ficou muito curioso
A partir daquele instante.

Disse que queria ver
E ouvir aquele canto
Que a cobra entoava
No seu mais puro encanto
Do profundo da lagoa
Mostrando seu grande pranto.

Ainda desconfiado
Da história da encantada
Sentou-se em uma pedra
Numa arena iluminada
Onde jogam futebol
Bem pertinho da beirada.

Ficou ali pela noite
Pensando com seus botões
Que as histórias do povo
Não passavam de ilusões
E que aquela era mais uma
Das quebradas dos sertões.



Lá pelas tantas da noite
Cansado de esperar
Adormeceu sobre a pedra
Ali naquele lugar
Quando de repente o canto

Começou a escutar.

Acordou bem assustado
Olhou a hora ligeiro
Deu um “pinote” pra trás
Escorregou no lameiro
Quis correr, porém não pôde
Aquele pobre estrangeiro.

Quando olhou para o lado
Da pedra onde dormiu
Viu a enorme serpente
Que entre as pedras sumiu
De repente em suas pernas
A grande cobra sentiu.

Enrolou-se em seu corpo
O corpo da grande cobra
E naquele desespero
O medo tinha de sobra
E dobrou-se na areia
Paralisado na dobra.



Quanto mais o viajante
Tentava se contorcer
Mais a cobra se enrolava
Aumentando o padecer
Do viajante medroso
Que só queria lhe ver.

Quando o jovem viajante
Sem forças se entregou
Ouviu uma voz suave
Que com calma lhe falou:
- Não grite jovem rapaz!
E logo o jovem calou.

Aquela voz tão serena
Que se ouviu na agonia
Era a bela voz de Isaura
Coberta de alegria
Porque o jovem parou
Pra ouvir o que diria.

O jovem clamou dizendo:
- Não me devore por favor!
Isaura disse: - Se acalme,
Não vou devorar o senhor
Só quero que me ofereça
Um pouquinho de amor.



O homem ouvindo aquilo
Começou a se acalmar
E disse: - Então é verdade
O que vieram me contar?
Que você foi encantada
Por quem lhe quis invejar?

Isaura naquela hora
Contando ao homem chorou
O homem ouvindo atento
Logo se prontificou
Em ajudar a encantada
E prender quem lhe encantou.

Isaura lhe perguntou
De um jeito maravilhoso:
- Me diga então seu nome
Homem forte e corajoso
Ele disse: - Você pode
Me chamar “João Mimoso”.

Naquele momento um brilho
Acendeu a escuridão
O homem na mesma hora
Movido de compaixão

Se apaixonou por Isaura
E pela sua canção.



E se olharam nos olhos
Com uma admiração
Que nem inveja, nem ódio
Faria a destruição
Daquele simples amor
Que nasceu da compaixão.

Quando um beijo encantado
Naquela noite rolou
E o brilho das estrelas
Sobre a lagoa brilhou
João Mimoso sentiu
Que Isaura lhe encantou.

Ao invés da cobra Isaura
De novo se tornar gente
Aconteceu uma coisa
Totalmente diferente
O homem quem virou cobra
Muito mais que de repente.

Isaura disse: - Não pode!
Isso tudo está errado!
João Mimoso disse:
- Espere, isso tudo foi pensado
Eu desejei tudo isso
Pedi pra ser encantado!



Isaura tão triste disse:
- Mas porque você fez isso?
João Mimoso lhe olhando

Mostrando seu compromisso
Disse: - Eu posso lhe explicar
Porque eu quis pensar nisso!

João olhando em seus olhos
Disse assim: - Me apaixonei
Por Isaura da Lagoa
A cobra que encontrei
E não a pessoa Isaura
Por isso me encantei.

Isaura ali entendeu
Que aquele amor valia
E deu um grande sorriso
E encheu-se de alegria
E entraram na lagoa
Quando o dia já surgia.

De manhã ninguém mais viu
Nem rastro do forasteiro
Só encontraram um sapato
A camisa e um isqueiro
Perto da pedra encantada
que dormiu o estrangeiro.



Nunca mais se ouviu o canto
Daquela cobra encantada
Por que encontrou amor
Onde jamais esperava
Vindo de um viajante
Que lhe esperou na beirada.

Isaura viu que seu canto
Era pura solidão
E pra curar esse mal
Abriu o seu coração
E a inveja foi vencida
Por uma linda paixão.


E sobre a moça maldosa
Que lançou a maldição
Desapareceu dali
Sem dar nem satisfação
E dizem que jamais ela
Teve na vida uma paixão.

Hoje em dia quando passo
Em frente aquela lagoa
Que lembro dessa história
De uma forma tão boa
Eu tenho vontade de ver
As cobras nadando a toa.

Mas tenho medo de ir
Até a pedra encantada
E passar a noite esperando
Sentado ali na beirada
Ouvir o canto de Isaura
Sentindo-se bem amada.

Essa história da Isaura
Eu garanto, foi verdade!
Se passou lá na lagoa
No meio do Padre Andrade
E é uma linda história
Da nossa bela cidade.

Ficam aqui os meus registros
Do romance encantado
Provando que a inveja
Não tem um lugar guardado
Quando o amor acontece
Sem ser por nós esperado.

FIM 
 

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