domingo, 7 de julho de 2019

UM CORDEL SOBRE MISTÉRIOS


O HOMEM QUE DESEJOU O MUNDO OU OS TRÊS CAVALEIROS DA MORTE




Dos cordéis que escrevi na vida, esse é um dos mais interessantes, um mistério acontecido no sertão do Ceará que eu ouvi de um conhecido e reproduzi em versos. Procuro sempre, em meus cordéis, trazer um certo pensamento reflexivo e pelo caminhar das coisas, penso que tenho conseguido tal coisa. Inda preciso melhorar na escrita do cordel, pois metrificar não é lá essas coisas tão fáceis. Sem mais delongas, um cordel misterioso para quem gosta de histórias sinistras:

Que as chuvas celestiais
De bênçãos e inspiração
Hoje sirvam de incentivo
E habitem meu coração
Para que eu possa ter êxito
Nesta minha narração.

Em cordel narro a história
Que me contaram um dia
Para que fiquem registros
Em forma de poesia
E os versos se perpetuem
Para o cordel ter valia.

Das histórias que ouvi
Nessa vida, por terceiros,
Uma guardei com atenção
Nos mais diversos roteiros
Que segui na minha vida
Pois são causos verdadeiros.

A história que vos conto
Se passou no Ceará
Em lugar que é difícil
Alguém chegar até lá
E quando chega, é impossível
Voltar pro lado de cá.

Essa vida é um mistério,
Ninguém sabe de onde vem,
O que viemos fazer
Nem pra onde vamos também,
Nem se sabe o que não temos
Nem se sabe o que se tem.

Em um remoto recanto
Do sertão deste estado
Um homem contou que foi
Em sentidos, arrebatado,
E contava tudo ao povo
Como algo mui sagrado:

Um dia, eu caminhando,
Pela beira da estrada
Seguindo o rumo da “venta”
Sem se preocupar com nada
Me deparei com um velho
Com a roupa toda rasgada.

O velho estendeu a mão
Me pediu uma esmola
Tinha num braço uma bengala
E no outro uma sacola
Com certeza, aquele velho,
Nunca soube o que é escola.

Eu, como não tinha nada,
Nada pude lhe ofertar,
Pedi perdão pela falta
Desejei não mais faltar
Mas o velho me olhando
Começou logo a falar:

Se você diz não ter nada
Você se engana, amigo!
Pois todos nós, neste mundo,
Levamos algo consigo,
E você tem humildade
Parou e falou comigo.

Vejo que é um homem bom
Humilde, forte, sincero,
E por você tenho apreço
Nada de você espero
Mas lhe proponho um acordo
Feito com muito esmero.

Na verdade não sou pobre
Moro em imensa mansão
Mando e desmando em tudo
O que tem por esse chão
Posso lhe dar tudo o que quer
Com um simples aperto de mão.

Se me queres como amigo
E meu acordo aceitar
Terás tudo o que quiseres
Bastando apenas falar
O preço não é barato
Mas é simples de pagar.

Basta dizer: Eu aceito!
E assinar esse papel
Com uma gota de sangue
E colocar esse anel
E tudo o quanto pedires
Será teu, homem fiel.

Ouvindo aquelas palavras
Não sabia o que dizer
As palavras me fugiram
Comecei logo a tre
Tem aquilo que um ser faz
O homem que vende a alma
Não tem um dia de paz.

Mas o coração do homem
Tem querer inconsequente
É movido por desejo
E isso apodrece a gente
E com minha assinatura
Me fiz escravo, servente!

Assim que assinei o contrato
O velho sumiu no vento
Logo veio uma tempestade
Dos confins do firmamento
E três cavaleiros negros
Me fazer um julgamento.

O primeiro disse: Eu
Vim aqui para servir
E farei isso com afinco
Sem comer e sem dormir
Mas cuidado com aquilo
Que você irá pedir.

O segundo disse: Eu
Vim aqui pra aconselhar
Tudo quanto for pedir
É melhor me consultar
Para ver se o pedido
Vale a pena se firmar.

O terceiro disse: Eu
Vim apenas pra julgar
Teus pedidos sendo bons
Eu irei te aprovar,
Porém, se forem ruins,
Minha mão irá pesar.

Os três falaram em coro:
Essa será tua sina
Pela alma que vendestes
Pensando ser pequenina
O que não aprendestes em casa
O mundo hoje te ensina.

Um somente a me servir,
Outro para aconselhar
O terceiro cavaleiro
Veio apenas pra julgar
Daquela escolha que fiz
Não podia mais voltar.

O meu ser inconsequente
Pediu poder e riqueza
Sem lembrar que tinha tudo
No mundo, na natureza
Mas o coração humano
Não vê tão fácil a beleza.

Os cavaleiros seguiram
Cada um dos meus pedidos
E nenhum por eles foram
Barrados ou impedidos
Mas eles mostravam ser
Cuidadosos, precavidos.

Quando estava bem de vida
Sentado, olhando o nada,
O primeiro caveiro disse
Que a hora era chegada
De pagar a minha dívida
Que foi por mim assinada.

Logo vi ao longe o velho
Com a sacola na mão
Voltei pra dentro correndo
Topei e cai no chão
Senti algo apertar
Dentro do meu coração.

Olhei pra trás e não vi
Do velho nenhum sinal
Levantei e, de repente,
Houve grande vendaval
Tomando a casa inteira
Da calçada até o quintal.

Numa fumaça escura
O velho me apareceu
Me olhou de cima a baixo
Meu corpo logo tremeu
Quando o velho disse a mim
Vim buscar o que é meu.

Você foi tolo, pediu
Somente o que lhe agrada
Não ajudou nenhum pobre
Sua mente foi fechada
E termina sua vida
Sem ter direito a nada.

Se tivesse divido
Tudo o que possuía
Tinha vivido mais tempo
E agora não iría
Ter que pagar o contato
Pois eu sei que não queria.

Você pensou em riqueza
Em poder e tudo mais
O seu corpo teve alívio
Mas agora, meu rapaz,
Você vai ter que aceitar
Sua alma não terá paz.

Você foi muito egoista
Podia mudar o mundo
Mas preferiu se servir
Teve um coração imundo
Agora pagará caro
Por perder cada segundo.

Nesse instante a minha alma
Sentiu tristeza sem fim
Remorso, dor, sofrimento,
Angústia, tormento, sim
Tudo por que o egoismo
Tomara conta de mim.

Não tinha mais volta aquilo
Mas resolvi apelar
Pedi ao velho uma chance
Pra poder me consertar
Somente mais um pedido
Pedi pro velho me dar.

O velho, bastante eufórico,
Disse a mim: peça que dou!
Sua alma já foi vendida
E nada mais lhe restou
Cuidado com o pedido
É o último. Afirmou.

Quando vi se achando esperto
A pedir não demorei
Disse: Eu quero voltar no tempo
Pro dia em que lhe encontrei
Assim não assino nada
E hoje não morrerei.

Quando o velho ouviu aquilo
Não sabia o que falar
Mas palavra é palavra
Atrás não pôde voltar
Ficou muito furioso
Não tinha como escapar.

Voltei naquele momento
Em que o velho encontrei
Dei-lhe algumas moedinhas
E logo o rumo tomei
O velho ficou me olhando
E eu sorrindo passei.

Esse foi o dia em que
As trevas eu enganei
Não é mentira essa história
Só eu vi e só eu sei
Tudo o que tive e vivi
O que perdi e o que dei.

E assim me contaram isso
Que vos conto em cordel
Torço para que essa história
Não fique só no papel
Que viaje pelo mundo
E chegue ao leitor fiel.

Dizem que a inteligência
Quanto mais exercitada
É como uma semente
Em terra boa plantada
Cresce muito e reproduz
E é por muitos admirada.

O egoísmo humano
Destrói nosso coração
Vamos dividir o leito
Repartir o nosso pão
E amar mais uns aos outros
Lembrando do nosso irmão.

Dos conselhos e ditados
Que eu guardei na memória
Esse é apenas mais um
Que eu carrego com glória
E torço para que fique
Na face da nossa história.

FIM

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